A aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil: Uma análise comparativa com o dolo eventual

Por Eduarda Sprea Ciscato.

No sistema da Common Law, a essência da lei penal reside no princípio de que não existe crime a não ser que a mente seja culpada[1] e a responsabilidade  é formada pela mens rea (elemento subjetivo) e pelo actus reus (elemento objetivo).

No que concerne o elemento subjetivo, há quatro estados mentais necessários para configurá-lo: i) propositadamente (purposely); conhecimento (knowingly); imprudência (recklessly); e, negligência (negligently).

No entanto, o “Model Penal Code”, no que refere-se a figura do “conhecimento” ampliou a sua definição, de modo a preceituar:

“Quando o conhecimento acerca da existência de um fato específico for uma elementar do delito, tal conhecimento é estabelecido se a pessoa está ciente da alta probabilidade de sua existência, salvo se ela realmente acredita que ele não existe”[2].

Surge, então, o conceito de cegueira deliberada (Willful Blindness), como um elemento de satisfação do conhecimento pleno. A Suprema Corte Americana firmou entendimento de que, para aplicar esta teoria, faz-se necessário que o réu: i) acredite subjetivamente que haja alta probabilidade de existir um fato; e ii) tome medidas deliberadas para evitar a aprendizagem desse[3].

Tem-se, portanto que: “A cegueira deliberada serve para permitir que o autor possa ser condenado mesmo quando tal conhecimento a respeito da certeza do resultado, da natureza de sua conduta ou da presença de alguma circunstância elementar concomitante não esteja plenamente configurado[4].

Já no Brasil, a despeito do dolo, necessário se faz a presença do elemento volitivo, o que engendra indispensabilidade do conhecimento[5]. O desconhecimento de elemento típico, dessa forma, ensejaria o erro de tipo, impossibilitando uma condenação na modalidade dolosa. Destaca-se, ainda, a figura do dolo eventual, quando o agente atua de forma irregular, sabendo dos riscos de sua conduta, mesmo que não tenha a vontade de causar um dano[6].

Ocorre que, por serem figuras muito parecidas o dolo eventual e a cegueira deliberada, quando da aplicação da teoria da Willful Blindness no direito brasileiro, tem-se distorcido e viciado os critérios estabelecidos, vez que os critérios por vezes nela inseridos são típicos do dolo eventual, como é o caso da indiferença frente ao possível resultado jurídico.

Ademais, se diante de um caso em que não há dolo eventual, quando da aplicação da teoria da cegueira deliberada, aufere-se a aplicação da figura do dolo eventual, pois aplica-se o seu conceito em um caso em que este não conta presente (pois, como discorrido, a cegueira deliberada é utilizada no Brasil com os mesmos critérios do dolo eventual). 

Nesse sentido, devido a aplicação descontextualizada da cegueira deliberada pela jurisprudência brasileira, a modificação dos critérios da Teoria resultou de fato na aproximação da cegueira deliberada ao dolo eventual, motivo pelo qual a sua aplicação  torna-se desnecessária. Nessa seara, o dolo eventual tem seus limites definidos pela legislação, jurisprudência e doutrina, sendo plenamente capaz de resolver as situações apresentadas por si só, não precisando do amparado da teoria americana[7], já que, como discorrido, no Brasil são aplicadas quase como sinônimos.


[1] CHESNEY, Eugene J. The Concept of Mens Rea in the Criminal Law. Journal of Criminal Law and Criminology, v. 29, nº 5, 627-644, 1939. p. 627.

[2] Requirement of Knowledge Satisfied by Knowledge of High Probability. When knowledge of the existence of a particular fact is an element of an offense, such knowledge is established if a person is aware of a high probability of its existence, unless he actually believes that it does not exist”. THE AMERICAN LAW INSTITUTE (ALI). Model Penal Code. Official Draft And Explanatory Notes. Philadelphia, 1985. Section 2.02(7), p. 49.

[3] First, the defendant must subjectively believe that there is a high probability that a fact exists. Second, the defendant must take deliberate actions to avoid learning of that fact. These requirements give willful blindness an appropriately limited scope that surpasses recklessness and negligence”. GLOBAL-TECH APPLIANCES, INC. V. SEB S.A. (2011). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/563/754/.

[4] LUCCHESI, Guilherme. Punindo a culpa com dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 2017, p. 182.

[5] GOMES, L. F. Curso de Direito Penal: parte geral. Salvador. JusPodivm, 2015, p. 183.

[6] ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 112-113.

[7] LEINDECKER, C. Rodrigo; FADEL, Alex. Equiparação da cegueira deliberada ao dolo eventual: possibilidade e utilidade. Revista Científica do Curso de Direito – Centro Universitário FAG. p. 37.

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