Por Lucile Kirsten.
O vínculo emocional entre humanos e animais de estimação tem evoluído de forma significativa nas últimas décadas. Para muitas pessoas, seus pets são considerados membros da família, recebendo cuidados, carinho e atenção, tornando-se, em diversos casos, parceiros de vida. Esse fenômeno reflete o conceito de família multiespécies, onde animais de estimação são reconhecidos como integrantes afetivos do núcleo familiar, e não apenas como bens ou propriedades.
Com o aumento da adoção de pets durante a constância de casamento ou união estável, surgem questões complexas no âmbito jurídico quando ocorre a dissolução dessas relações. Entre elas, destacam-se o direito à guarda compartilhada e o pagamento de pensão alimentícia para os animais de estimação, visto que o gasto com eles pode ser bem elevado.
- A Natureza Jurídica dos Animais
Os animais de estimação, apesar de não possuírem Personalidade Jurídica, são reconhecidos como Sujeitos de Direito no ordenamento jurídico brasileiro.
Tradicionalmente classificados como bens móveis pelo Código Civil, eles não podem exercer direitos ou contrair obrigações diretamente. No entanto, são destinatários de proteções legais, que garantem seu bem-estar e dignidade.
Com o avanço das leis, como a Lei 13.364/2016, que reconhece os animais como seres sencientes, e decisões judiciais que contemplam a guarda e a pensão para eles, o direito tem se adaptado à nova realidade, reconhecendo a importância afetiva dos animais nas famílias e protegendo seus direitos.
- O Reconhecimento da Família Multiespécies
A noção de família multiespécies reflete a evolução do conceito de família no direito brasileiro. A Constituição Federal de 1988 já reconhece a família como base da sociedade e, com o tempo, o Judiciário passou a interpretar essa concepção de forma mais inclusiva, abrangendo não apenas vínculos consanguíneos ou afetivos entre humanos, mas também as relações afetivas entre humanos e animais.
Deste modo, entre diversas outras modalidades, a relação familiar multiespécie foi reconhecida, conforme definido pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, consequentemente trazendo diversos questionamentos sobre os reflexos desse entendimento nas demais esferas do judiciário.
- A Guarda Compartilhada de Animais
Em muitos casos, os Tribunais brasileiros têm começado a reconhecer o direito de guarda compartilhada de animais de estimação, aplicando as disposições referentes à guarda contidas no Código Civil, de forma analógica, para regulamentar a custódia de animais domésticos.
Assim como ocorre com filhos, a guarda dos pets pode ser dividida entre os ex-cônjuges, levando em consideração o melhor interesse do animal, seus hábitos e o vínculo que ele possui com cada um dos tutores. Embora a legislação ainda não tenha uma previsão específica para animais, decisões judiciais baseadas no Código Civil, que define o bem-estar do animal como uma questão de responsabilidade e cuidado, têm reconhecido essa modalidade.
Veja-se a posição dos Tribunais nesse sentido:
GUARDA DE ANIMAL – Importância do animal na dinâmica familiar – Possibilidade de discussão sobre direito de visitas após término de relação afetiva entre as partes – Pretensão para reconhecimento de guarda exclusiva – Alegações e documentos juntados aos autos pelas partes que permitem concluir que o cachorro foi adquirido quando as partes ainda mantinham relacionamento afetivo e que, mesmo depois do término dessa relação, exerciam a guarda compartilhada dele, igualmente lhe dispensando afeto e cuidados – Ausência de prova no sentido de que a guarda compartilhada efetivamente implicou em danos à saúde do animal e que as condições de cuidado e conforto oferecidas pela autora não sejam adequadas ao seu bem estar físico e emocional, à sua saúde e vida digna – Ônus da parte de produzir provas para comprovar suas alegações – Solução de guarda compartilhada que se mantém. Recurso não provido. (TJ-SP – AC: 10181856820208260002 SP 1018185-68.2020.8.26.0002, Relator: Sá Moreira de Oliveira, Data de Julgamento: 10/06/2021, 33ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/06/2021)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA – PRELIMINARES – INTEMPESTIVIDADE DO SEGUNDO RECURSO – CERCEAMENTO DE DEFESA – REJEITADAS – MÉRITO – CUSTÓDIA DE ANIMAL DOMÉSTICO – APLICAÇÃO ANALÓGICA DAS DISPOSIÇÕES REFERENTES À GUARDA – TUTELA JURISDICIONAL DO AFETO HUMANO-ANIMAL – ALTERAÇÃO DA FORMA DE CUSTÓDIA ESTABELECIDA PELA SENTENÇA – POSSIBILIDADE – CUSTÓDIA ALTERNADA – PRIMEIRO RECURSO PROVIDO E SEGUNDO RECURSO NÃO PROVIDO. 1- Constatado que a segunda apelante é assistida pela Defensoria Pública, que conta com o prazo em dobro para os atos processuais, e que o recurso de apelação foi interposto dentre do prazo que estabelece o Código de Processo Civil, o recurso deve ser conhecido. 2- Não há cerceamento de defesa quando os elementos presentes nos autos são suficientes para fundamentar o convencimento do juízo. Poderes instrutórios do magistrado contemplados no art. 370 e seu parágrafo, do Código de Processo Civil. 3- É possível a aplicação analógica das disposições referentes à guarda contidas no Código Civil para regulamentar a custódia de animais domésticos, em observância ao que dispõe o artigo 4º da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro, visando tutelar a relação de afeto humano-animal. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 4- Verificado que ambas as partes nutrem grande afeto para com o animal doméstico e lhe dispensam os cuidados devidos, na ausência de maus tratos, não há óbice para que exercício da custódia ocorra de forma alternada, solução que melhor equaciona os direitos iguais dos proprietários relativos à convivência com seu animal de estimação. (TJ-MG – Apelação Cível: 5002213-48.2020.8.13.0035, Relator: Des.(a) Francisco Ricardo Sales Costa (JD Convocado), Data de Julgamento: 08/03/2024, Câmara Justiça 4.0 – Especiali, Data de Publicação: 11/03/2024)
Sendo assim, fica clara a possibilidade de reconhecimento de guarda compartilhada entre tutores de animais de estimação, nos casos em que o animal tenha sido adquirido na constância do relacionamento e possuir relação afetiva com ambas as partes.
- Pensão Alimentícia para Animais
Outra questão relevante é o pagamento de pensão alimentícia para o animal. Assim como ocorre em casos envolvendo filhos menores, um dos ex-cônjuges pode ser responsabilizado por arcar com despesas necessárias para o cuidado do animal, como alimentação, tratamentos veterinários e outros custos. A justificativa para esse tipo de pensão reside no fato de que, em muitas situações, a manutenção do padrão de vida do animal, especialmente em casos de separação litigiosa, deve ser preservada, assegurando sua saúde e bem-estar do animal.
Neste sentido, o Juízo da 1ª Vara Cível de Conselheiro Lafaiete, na figura do magistrado Espagner Wallysen Vaz Leite, deferiu o pedido da tutora de receber pensão alimentícia provisória, no valor de 30% do salário-mínimo, destinada ao seu animal de estimação.
Logo, compreende-se que também é possível o reconhecimento deste direito em casos similares, onde é configurada a necessidade de auxílio financeiro de uma das partes para que o bem-estar e dignidade do animal sejam mantidos.
- Conclusão
O reconhecimento da guarda compartilhada e da pensão alimentícia para animais de estimação nestes precedentes reflete uma evolução na forma como o Judiciário enxerga as relações familiares, acolhendo o conceito de família multiespécies.
Com isso, o direito se torna mais sensível às demandas contemporâneas, valorizando os laços afetivos entre humanos e seus companheiros de estimação, e garantindo que o bem-estar animal seja protegido em processos de dissolução conjugal.